09/10/2020

O Cão e a Raposa




Que a Disney possui obras maravilhosas é um fato incontestável. E entre tantas, O Cão e a Raposa é uma das histórias mais bonitas e reflexivas já produzidas pelo estúdio. E o tipo de animação que passamos não apenas a valorizar mas, principalmente, a notar a profundidade total dele quando já somos adultos.

O Cão e a Raposa é um clássico produzido e lançado em 1981, sendo o 24º longa animado dos estúdios Disney, e levemente baseado na obra homônima de Daniel Pratt Mannix. Uma sequência foi produzida em 2006, que conta uma historinha quando os protagonistas ainda são filhotes porém, embora seja bonitinho, não possui relevância para com a obra original e é dispensável de se comentar neste artigo.

A história da animação original gira em torno de uma inusitada amizade entre Dodó, um raposo, e Toby, um cão de caça. Sem saberem que são destinados a serem inimigos naturais, os dois filhotes se conhecem e rapidamente se tornam grandes amigos. Porém, logo eles percebem, através de seus donos (Dodó foi adotado por uma viúva e Toby pertence a um caçador) que sua amizade é algo intolerável para a sociedade em que vivem. Eles próprios ao se tornarem adultos, perceberão isso com uma intensidade a ponto de se verem obrigados a encarar seus próprios destinos, com sua amizade tendo que ser submetida a testes definitivos.



A forma como essa história é contada e seus temas são abordados é sublime. Ela fala sobre preconceito e estereótipos, e como eles são criados pela sociedade em relação a determinados grupos que sempre acabam contribuindo para uma maior separação de indivíduos de diferentes etnias e culturas, fazendo esse demonstração e reflexão através de personagens animais.
A Disney sempre trabalhou com esse tipo de tema, mas antes de Zootopia, nenhuma outra tratou com tamanha profundidade quanto O Cão e a Raposa. E, embora Zootopia tenha abordado o tema de forma mais ampla, O Cão e a Raposa o aborda de uma forma mais sutil e com uma atmosfera mais dramática e ousada, algo comum e maravilhoso que a Disney fazia em suas obras mais antigas e que, infelizmente, abandonou com o tempo.




A evolução realista da amizade de Toby e Dodó reflete muito 
diversas amizades que temos ao longo de nossas vidas.


Em termos técnicos, a animação carrega muito do estilo mais clássico e encantador do estúdio. Os cenários são belamente desenhados, que nos lembram o estilo de Bambi. Porém, a floresta de O Cão e a Raposa possui uma atmosfera mais sombria. Enquanto a floresta de Bambi nos é apresentada de uma forma mais iluminada e acolhedora, a de O Cão e a Raposa nos é apresentada em uma névoa que vai se dissipando aos poucos embalada pelo silêncio e um som quase imperceptível. E a música entra de súbito, tensa em um momento que já nos causa agonia e deixa claro que a história a ser contada não é uma história "toda bonitinha".

De certa forma, pode-se dividir o filme em duas partes, dois arcos bem distintos e que mostram muito bem o equilíbrio e a dualidade entre histórias, personagens e a mensagem que se deseja passar.
A primeira parte, a exceção da cena inicial, é bem leve e divertida, mostrando Toby e Dodó filhotes, se conhecendo e brincando juntos. Essa parte foi claramente feita para atrair o público infantil, porque os dois protagonistas são tão fofos juntos que é impossível não se encantar por eles. Assim, a primeira parte segue um ritmo mais inocente e simples, inclusive com um arco de cenas entre personagens coadjuvantes que, realmente, não agregam em nada na história em si, muito embora seja engraçadinho de acompanhar. Conhecemos também os donos de ambos (Samuel Guerra e a viúva Tita) que são bem carismáticos incluindo nas discussões deles, típicas de vizinhos.
A segunda parte do filme, que se dá após uma determinada passagem de estações (e que ilustra o crescimento de seus protagonistas até a fase adulta) quase parece uma outra história. O visual e os cenários adquirem tons mais soturnos, os personagens carregam um apelo mais dramático e reflexivo de amadurecimento, a história se consolida em sua narrativa. E é nessa segunda parte que o filme realmente brilha, em sequências excelentes de ação (destaque para a intensa perseguição até a linha do trem), de drama (como não se emocionar com aquela cena triste de Dodó e sua dona?) até o ápice da história.

Aliás é preciso mencionar que o último ato do filme é uma sequência de acontecimentos que mexe com nosso emocional. Os animadores fizeram um excelente trabalho na cena de combate contra o urso (urso este que é, sem dúvidas, um dos animais mais assustadores da disney), bem como a mudança dos personagens em vista dos caminhos e posicionamentos que adotam com base no meio social em que são inseridos e suas posições neste meio. O filme acaba por mostrar que atitudes tendenciosas movidas pela raiva e intolerância oriunda de posicionamentos pré-estabelecidos socialmente, podem prejudicar até os mais profundos relacionamentos mas que todos somos capazes de rever nossos atos e preconceitos, mostrando uma poderosa mensagem moral e importante para o público.
 
O Cão e a Raposa também possui o mérito de apresentar belíssimas sequências, as quais conseguem equilibrar perfeitamente momentos mais descontraídos e leves com outros por sua vez mais intensos e profundos. E o final, é, sem dúvidas, um dos mais bonitos e sensíveis da disney. É um final nem totalmente feliz e nem totalmente triste: é agridoce. Como na vida real


 
Os cenários são de encher os olhos, parecem uma pintura clássica!


A história de O Cão e a Raposa nos estúdios Disney é muito anterior ao seu lançamento. Em 1967, os estúdios Disney haviam comprado os direitos para realizar uma adaptação da obra literária. Mas apernas em 1977 é que o projeto começou a ser desenvolvido, isso após Wolfgang Reitherman decidir que a história poderia vir a se tornar um bom filme de animação.
Entretanto, enquanto a animação era produzida, nos bastidores acontecia um grande conflito de gerações. Como é uma história longa, vou tentar aqui resumir da melhor forma possível porque é impossível falar sobre O Cão e a Raposa sem mencionar a importância histórica que essa animação carregou por conta do que aconteceu entre as equipes envolvidas.

Para quem não sabe, Wolfgang foi uma das figuras mais emblemáticas e poderosas dentro dos estúdios Disney. Fazia parte dos "9 Anciões" como eram chamados os animadores e produtores que estavam trabalhando na Disney desde a sua fundação. Além de ter sido um grande animador, Wolfgang também era um excelente co-produtor e foi o primeiro animador a também dirigir um filme de animação. Entre suas participações mais célebres estão as cenas de ação de A Bela Adormecida, Fantasia, Pinóquio e As Aventuras de Ichabod. Em 101 Dálmatas ele foi chefe do setor de animação, em A Espada era a Lei e Mogli, foi animador e diretor (esse último a pedido pessoal do próprio Walt Disney que na época já lutava contra o câncer). 
Em O Cão e a Raposa, Wolfgang Reitherman era o diretor e Art Stevens era o co-produtor. Entretanto, devido a conflitos que se sucederam entre ambos, Wolfgang acabou meio que saindo do projeto e posteriormente, as produções Disney foram feitas pela nova jovem equipe de produtores (que entre muitos talentos estava ninguém menos que Don Bluth, que não tardou a sair da Disney e fundar seu próprio estúdio de animação, fazendo sucessos como Fievel um Conto Americano e Anastasia). Esse atrito ocorreu porque Ron Miller decidiu apoiar o jovem e promissor Stevens, instruindo Wolfgang a entregar as rédeas do projeto para os "novatos". Wolfgang resistiu por um tempo devido a falta de confiança que tinha nos jovens animadores, mas por fim acabou aceitando.

Ter conhecimento sobre esse ocorrido nos bastidores da produção do longa animado nos permite compreender diversos pontos técnicos presentes na obra e que contribuíram para o resultado final. Talvez o mais visível dele seja relacionado a um dos personagens do desenho, o cão de caça Chefe.
Chefe é o cão de caça mais velho e experiente mas que, com a chegada de Toby, embora desenvolvam uma afeição por amizade e parceria, com o tempo rola o sentimento de ciúmes e divergências e essa situação no desenho soou como um claro reflexo do que ocorria entre as duas equipes que trabalhavam na produção: o conflito de gerações.
Outro ponto foi a decisão de destino dado ao personagem Chefe. Os mais velhos queriam um final mais trágico para o personagem, como ocorre no livro e que serviria de catalisador mais definitivo para a decisão de Toby. Mas a nova equipe preferiu manter um destino mais brando alegando que algo mais trágico seria "pesado" demais.

Como se não bastasse estes conflitos durante a produção, O Cão e a Raposa ainda ficou na fase considerada mais "apagada" do estúdio, junto com produções como Robin Hood, Bernardo e Bianca e Oliver e sua Turma. 
Essa foi uma fase um pouco complicada para a Disney, que não teve animações épicas e marcantes como a fase inicial (de Branca de Neve, Cinderella, A Bela Adormecida, etc) e transitou entre a época em que o estúdio passou por dificuldades financeiras com obras que não trouxeram o lucro esperado (como Caldeirão Mágico) até o "renascimento" quando a nova geração de animadores e produtores restaurou o mesmo sucesso do início do estúdio (com os sucessos  A Pequena Sereia, A Bela e a Fera e Rei Leão, por exemplo).
Isso, aliado ao fato de O Cão e a Raposa não ser um filme épico e com canções memoráveis como a de outras obras além de ter uma abordagem mais sombria e dramática e com seu final agridoce, pode ter contribuído para não ter um grande sucesso e não ser tão memorável, muito embora tenha sido bem recebido em sua estréia.


 
o primeiro pôster oficial e o pôster oficial da edição remasterizada.


Sobre o Livro

Como mencionado no início do artigo, O Cão e a Raposa é uma adaptação do livro do mesmo nome. Entretanto, as semelhanças entre o livro e a animação só carregam a essência mais básica pois são histórias com rumos e abordagens bem diferentes. Necessário dizer que, se você é sensível a determinados temas principalmente envolvendo animais, a leitura do mesmo não é recomendado. A obra do autor Daniel Pratt Mannix é pesada, violenta e muito triste. Além de manter os animais como animais (no livro, em nenhum momento Toby e Dodó desenvolvem uma amizade) sem aquele contexto mais humanizado, o final não é nem um pouco feliz para nenhum dos personagens. Desse modo, assim como aconteceu em O Corcunda de Notre Dame, a Disney soube adaptar (e muito bem) uma obra literária adulta e trágica em algo encantador, atrativo e feliz, ainda que não do tipo "viveram felizes para sempre".

Quando criança, ganhei a fita VHS desse desenho que eu já gostava por conta de um livrinho de colorir que minha irmã tinha. Ao assistir, eu adorei a história principalmente pela fofura que Toby e Dodó tinham e sempre achei a história toda muito bonita. Mas ao rever, já adulta, percebi ali no desenho tantas questões levantadas de forma sutil para serem refletidas bem como uma inevitável comparação com, a vida real. E foi então que não consegui conter as lágrimas nas duas cenas finais que carregam um peso emocional  tão bonito sobre amizade e os caminhos de cada um.
O filme ainda tem frases que nos levam a refletir e ilustram muito a realidade inerente na vida de todos nós, como a dita pela personagem Mamãe Coruja a Dodó após este ter se despedido de Toby, que saíra em viagem.
" Para sempre, é muito tempo. E o tempo dá um jeito de mudar as coisas."
Essa frase tem um impacto tão grande não apenas nos rumos que a vida dos personagens tomam dentro da história, mas principalmente a verdade que ela carrega em nossas próprias vidas.

 Contudo, apesar dos pesares, é extremamente tocante o modo como enfim vemos a amizade dos dois falar mais alto e como ela ainda continua viva e forte, mesmo com todos aqueles sentimentos de raiva, vingança e perseguição, a ponto de um estar disposto a se sacrificar ou intervir a favor do outro. E o melhor, toda essa reviravolta é expressa apenas através dos olhares e pequenos gestos de Toby e Dodó, em cenas verdadeiramente sublimes, praticamente isentas de diálogos. Foi ótimo a Disney não ter optado por diálogos clichês ou algo do tipo, comum em desenhos do gênero. O resultado final de fato é muito bonito.

 Mais do que divertir e entreter as crianças, ele conversa com os adultos também, ao ponto de nos fazer refletir sobre as mudanças de caminhos de vida conforme nossos ideais e como eles se moldam por conta da sociedade em que vivemos, além da perda da inocência através do amadurecimento que a vida nos traz com o passar do tempo.


"- Nós vamos ser amigos para sempre, não vamos?
- É, para sempre."


~*~

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Um comentário:

  1. Oi, Tsu!
    Eu não conhecia essa animação. Parece ser muito boa.
    Terei que por na minha lista agora hahaha.

    Beijos!

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