30/01/2020

O FAROL - crítica



O terror psicológico freudiano e lovecraftiano em sua
 forma profundamente perturbadora.


Desde que tive conhecimento deste filme através de comentários e imagens aleatórias, fiquei interessada no que ele poderia ser. Até porque, o filme (lançado em 02 de janeiro de 2020) foi lançado sem qualquer informação real sobre do que se tratava.


O Farol ( The Lighthouse) é um filme de horror, mas não um filme de horror como o qual estamos acostumados e isso fica claro já por qualquer imagem do filme. Inteiramente em preto e branco e filmado em 35 milímetros, ele remete aos clássicos filmes do cinema mudo, com uma atmosfera semelhante ao expressionismo alemão (que, certamente, foi um fator crucial do filme estar concorrendo ao Oscar de Melhor Fotografia). O posicionamento quadrado da câmera nas cenas internas, cria a atmosfera claustrofóbica perfeita para os diálogos intensos e algumas vezes confusos em meio a suas revelações embargadas por um toque de metáforas. E as cenas externas, com a ausência de cores, aumenta a sensação da profundidade do ambiente totalmente inóspito e isolado. 
Juntando sua parte técnica, mais seu roteiro profundamente psicológico, o filme carrega tudo o que é referencial ao cinema alternativo, sendo bem visto pela crítica e com um trabalho de atuação magnífico. 

Quando terminei o filme, me peguei refletindo sobre ele por um tempo e uma das primeiras coisas foram o paralelo que tracei com a psicanálise, o horror da paranóia e insanidade, as referências á diversas mitologias (principalmente a grega e a de Lovecraft) mas notei semelhanças, tanto no quesito abordagem de elementos míticos de forma poética e metafórica, quanto psicológica, que me lembraram muito a outro filme de terror maravilhoso: A Bruxa.
E foi então que, ao pesquisar informações sobre o Farol, eu me toquei de que ambos filmes são obra do mesmo diretor: Robert Eggers.
Embora esteja começando, este diretor tem mostrado um trabalho incrível em obras do gênero: fugindo do pastelão jumpscares de roteiro vazio e clichês, Eggers desenvolve obras de terror focadas no psicológico e na insanidade, embargados pelos conflitos sociais interiorizados e - aqui talvez o ponto mais alto de sua genialidade criativa - referências simbólicas há mitologias.

 Isso ocorreu com A Bruxa e também ocorre com O Farol. Mas é importante mencionar que não existe uma "repetição": a abordagem de ambos filmes é totalmente diferente e os elementos que os compõem também. Mas tanto em A Bruxa como em O Farol, estamos diante de uma obra no qual o espectador deve decodificar e refletir. E assistir mais de uma vez para se captar todos os detalhes e nuances presentes nele.
Eggers parece ter predileção por histórias que se narrem no passado, de modo que em O Farol, a trama se passa por volta de 1890. Tanto o diretor como o roteirista se voltaram para o inglês antigo (onde os atores precisaram aprender o sotaque da época), o que gera uma realidade e a opção de se rodar o filme em preto e branco foi certamente a melhor escolha. Em diversos momentos é como se lêssemos um conto de Lovecraft e Poe, com seu toque sobrenatural, psicológico, decadente e por que não, poético.



Se, em A Bruxa foi abordado o poder feminino em todo um contexto místico, social e metafórico, em O Farol estamos diante do masculino em um contexto social, metafórico e perturbador. O filme vai, ao longo dos seus 1h50min, desconstruindo as noções de masculinidade arraigadas na sociedade (ainda mais na época em que se passa a história) ao mesmo tempo que traz diversas referências literárias (Poe, Lovecraft) e cinematográficas (Kubrick, Bergman). Isso sem falar nas referências mitológicas, principalmente a grega e que, para quem conhece, é um verdadeiro deleite.
Aliás, falando na parte de mitologia, o filme é recheado delas. Com direito a uma prece aos deuses do mar, e até um paralelo de Proteu e Prometheus na imagem dos dois personagens, o filme insere os elementos em meios a alucinações e sonhos do personagem de Pattinson. Inclusive a cena final remete muito tanto a lenda de Prometheu quanto a lenda de Ícaro.

A história começa silenciosa (exceto pela trilha sonora perturbadora) quando dois marinheiros: o veterano Thomas Wake (Dafoe) e o novato Ephraim Wislow (Pattinson) são deixados na ilha do farol para ali permanecerem durante um mês. O trabalho consiste em manterem o local funcionando, já que o farol é a "luz" que guia outros navios que possam estar perdidos. 
Mas não demora muito para que a diferença de hierarquia, o tédio das tarefas e o isolamento comecem a afetar a mente dos dois homens. Principalmente por conta da figura de autoridade que Wake impõe, obrigando Ephraim a diversos afazeres diários (cuidar da casa, alimentar a fornalha, etc) enquanto ele dorme boa parte do dia e passa a noite inteira no farol e sua luz ofuscante, lugar o qual ele proíbe veemente que Ephraim entre.
Com o passar dos dias, a convivência entre ambos vai se tornando mais perturbadora e em meio a insaciáveis bebedeiras que se tornam a única distração possível, seja do ambiente mórbido e isolado, seja dos próprios medos e paranoias interiores de cada um. É exatamente nestas cenas, de diálogos de dupla interpretação, com a câmera quadrada e centralizada, com o realce de luz e escuridão que só uma filmagem em preto e branco pode demonstrar com perfeição, que nos sentimos adentrar no filme, buscar as respostas que Ephraim busca e ir, pouco a pouco, junto com o personagem, se deparando com as respostas de seu passado e da influência e intenções de Thomas Blake sobre ele.

Talvez, contar mais sobre o enredo, seria estragar a experiência de emergir na história e ir vivenciando-a como os personagens vivenciam. Sendo um filme de isolamento, Dafoe e Pattinson dominam a tela, entremeados com seus diálogos no qual o constante consumo de bebidas alcoólicas contribuem para que a insanidade flua e as revelações de Ephraim surjam á tona pouco a pouco.


Robert Pattinson, tu conseguiu imersão completa e a 
admiração de geral por sua atuação.


É preciso salientar o incrível trabalho de atuação de Willem Dafoe e Robert Pattinson.
Dafoe nos entrega um veterano brusco, rude e mandão chamado Thomas Wake enquanto Pattinson representa o perturbado e sombrio Ephraim.

Ambos atores se entregam ao papel: Dafoe já é um ator veterano e sua atuação neste filme é simplesmente sublime. Seu monólogo no qual ele passa mais de dois minutos sem piscar e como ele pranteia uma prece ao deus dos mares (teria ele, de certa forma, invocado a tempestade que assola a região e faz com que ambos permaneçam ali?) é de agradar o espectador pois, em um filme como O Farol, as nuances de gestos e expressões são um fator crucial para o envolvimento da trama. E Dafoe é um alicerce que ajuda a justificar a narrativa e permitir que Robert Pattinson tenha a chance de mostrar uma de suas melhores atuações.
Eu confesso que não esperava tamanha incrível atuação de Pattinson (sem dúvidas, daqui alguns anos, veremos esse cara levando Oscar de Melhor Ator) com seu protagonista complexo e que aos poucos vai caindo na insanidade. No primeiro momento, acreditamos que Ephraim está enlouquecendo talvez, por uma força oculta que paira na ilha mas, ao decorrer da história vamos percebendo que talvez, Ephraim já tenha vindo á ilha não totalmente são e ainda carregando um segredo consigo que ele acredita que o isolamento será capaz de expurgar. Pattinson entra no personagem de uma forma tal que cada expressão, cada ato, cada gesto e cada atitude (foco na visceral cena com a gaivota) nos perturba e nos faz tentar prestar atenção em todos os mínimos detalhes.

Ainda que fiquemos intrigados e na dúvida de que, até que ponto a insanidade de Ephraim já é existente ou foi instigada a aflorar, seja por Wake ou por algo mais além, há todo o elemento mítico que se funde e se molda juntamente com os sonhos e atitudes de seus personagens, criando uma coleção de referências que enchem os olhos (como a cena em que Ephraim parece se ver diante do próprio Poseidon e de seu rosto jorra a intensa luz do farol).

Mas,embora o filme faça uso de diversas alegorias místicas, uma frase do próprio Pattinson deixa claro que o sobrenatural não é algo real fora da mente de seu personagem:

"Eu não quero fazer um filme sobre um farol mágico. Eu quero fazer um filme sobre a porra de uma pessoa louca".

Enfim, O Farol é um filme de terror psicológico e metafórico. Um mergulho á insanidade causada pelo sadismo, pela consciência pesada, pela fuga social e pelo isolamento. Com uma história lenta e perturbadora além de uma conclusão impactante (mais crua do que A Bruxa, mas igualmente simbólica), o diretor Eggers nos brinda com mais uma obra-prima, trazendo de volta e inovando em uma nova forma de fazer filmes de horror. Sombrio, perturbador, confuso e reflexivo da insanidade causada pela carga social e sua influência através da psique humana de indivíduos perturbados que, isolados, confrontam-se com o que possuem de pior. Até que cheguemos na conclusão de que o verdadeiro horror pode ser o nosso horror interior.



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