08/10/2019

O CORINGA - crítica





Que filmaço, meus consagrados! Que filmaço.


Fazia muito tempo que eu não fazia resenhas críticas e analíticas (embora amadoras, confesso) de filmes. Mas após uma conversa com um amigo meu ( Oi Alê!) decidi tentar me desenferrujar um pouco e escrever algo do tipo. Resolvi aproveitar que a memória está  fresca após assistir
Resolvi arriscar fazendo isso com o filme do momento: O Coringa.



Mesmo antes de sua estréia, o filme já estava sendo comentado e aguardado com fascínio, apreensão e muita expectativa. E o que está sendo vislumbrado pelo grande público é um tipo de filme que há um bom tempo não víamos, carregando muito do cinema-arte mas também uma grande reflexão sobre as consequências da queda da sociedade e dos indivíduos que a compõem.

Coringa não é um filme para qualquer um. E acredito que boa parte das pessoas que foram (e irão) assistí-lo pensando que haverá uma romantização de violência ou mesmo algo do universo dos quadrinhos, perceberão rapidamente que não é nada disso.
O filme é pura arte, em várias de suas formas. É filme de Globo de Ouro, é filme de Oscar, é filme dos críticos e fãs de cinema. Os prêmios que já levou o Leão de Ouro no Festival de Veneza são mais do que merecidos e certamente será agraciado também com indicações e até mesmo mais de um Oscar.

Falar sobre o enredo do filme seria entregar informações que valem ser saboreadas enquanto se assiste. Então, digo aqui para que você assista e veja por si mesmo. Mas tendo em mente que você irá assistir um filme original, praticamente sem relação alguma com os quadrinhos exceto no Arthur Fleck/ Coringa, a família Wayne (aparecendo em poucos momentos, mas de extrema importância - principalmente Arthur). Um filme que faz uso de uma direção, roteiro, fotografia e interpretação mais realista, profundo e monólogo. Um filme criado para se ter liberdade criativa, fazer o espectador refletir e conquistar prêmios da Academia de cinema.




Quando eu assisti e fiz um pequeno post sobre, muitos vieram me perguntar o que eu achei e se o filme era mesmo tudo aquilo que a crítica estava falando (e se o filme estava mesmo tão pesado como diziam). O que posso dizer é que fui assistir ao filme segura de que seria algo bom mas ao mesmo tempo sem grandes expectativas. E á medida que assistia, fui ficando mais e mais confortável por estar vendo um filme feito para ser admirado, ser debatido. E me senti plenamente satisfeita de estar vendo um filme de um personagem de quadrinhos que nada tem a ver com os filmes de quadrinhos.
Quanto a violência do filme: não é excessiva e nos momentos em que ela ocorre, é de forma crua, realista e rápida, nunca inserida de forma desnecessária ou romantizada.

Mas claro que, para pessoas mais sensíveis ou que acabem sendo mais sugestíveis a absorver uma obra de uma forma mais real (em vez de apenas ver o filme como apenas um filme para refletir), a obra pode causar um certo nó na garganta. Eu não senti isso talvez porque esteja acostumada em apreciar obras densas e perturbadoras. Mas se você assistiu a série The Handmaid's Tale e lidou bem com o peso das cenas e dessa obra, Coringa não vai te chocar. Aliás, embora estas duas obras não tenham parâmetros em comum (exceto a selvageria que a sociedade pode mergulhar) comentei sobre Handmaid's Tale porque essa obra depois que você assiste, te cria escudos emocionais bem resistentes para qualquer outra obra. XD
Mas, após conversar com pessoas próximas á mim que são mais empáticas e sensíveis, que acabam absorvendo e sentindo o famoso "nó na garganta" diante de obras mais densas psicologicamente (oi, Allan! ) posso dizer que: se você é uma pessoa sensível, que se abala fácil ou tem facilidade em desenvolver "gatilhos", assista o filme com cuidado ou o veja quando estiver se sentindo bem. 

Porque ele causa uma perturbação com a postura da sociedade sobre o indivíduo (ainda que não seja inteiramente a causa para seus atos, ela possui um fator importante para a formação do mesmo) e isso nos faz refletir sobre muitos aspectos. E não, o filme não romantiza Arthur Fleck mas sim mostra de forma realista sua trágica trajetória de um pseudo comediante frustrado e com problemas mentais até o "despertar" de sua psicopatia e auto-realização melancólica. E como uma sociedade egoísta, excludente e perversa pode auxiliar na decadência de um indivíduo.




Eu poderia aqui falar sobre o que acontece no filme para salientar as mensagens que ele carrega, mas isso seria entregar a obra. O melhor é que o espectador assista, analise e se surpreenda. O que posso informar sobre o enredo é que, somos apresentados ao personagem com ele sendo triste e desiludido, por ter um distúrbio mental que afeta sua vida em sociedade ao mesmo tempo em que vê seu sonho de se tornar um humorista de sucesso se desvanecer. Ele vai tendo seus desdobramentos particulares através do cenário social no qual está inserido e sua tragédia ecoa na decadência da cidade a sua volta.
A partir desse desdobramento, o personagem passa a se sentir empoderado. Mais livre. Mais dono de sua identidade. Não mais passivo. O que torna tudo mais real e perturbador. Ele personifica a cultura da violência em si, numa mistura de ensaio e improviso, e se diverte a vendo explodir pela cidade.

Um dos pontos mais altos do filme Coringa é a fonte do qual ele se alimenta para compor sua trajetória narrativa: ao longo do filme vemos a forma visual que lembra os filmes de Martin Scorcese (aliás, se esse filme fosse dirigido por ele, teria ficado ainda mais soberbo, mas Todd Phillips faz muito bem seu trabalho), muitas referências á Taxi Driver, O Rei do Show, O Mestre (com Joaquin como protagonista), Um Estranho no Ninho, Dia de Cão e Laranja Mecânica.
O filme ainda tem umas curiosidades subtendidas bem interessantes, a começar pela presença de Robert deNiro no filme: ele não foi escalado ao acaso ou somente por seu incontestável talento mas porque ele protagonizou dois dos filmes que mais podemos ver referências em Coringa: Rei do Show e Taxi Driver. O primeiro vemos semelhanças da ambientação e o segundo vemos semelhanças de Murray Franklin em Arthur Fleck.

Outro detalhe interessante é a maquiagem do Coringa de Phoenix. Ela é baseada na maquiagem de John Wayne Gacy, um dos maiores seriais killers da história. Ele se vestia de palhaço para festas infantis e eventos de caridade (e também se vestia de palhaço para torturar suas vítimas). E outra referência á ele está presente no clube de comédia que Athur frequenta/ se apresenta: o local chama-se Pogo's um dos nomes que John Wayne utilizava quando se caracterizava de palhaço. A referência´a ele colocada no filme provavelmente tem relação com a época de ambientação que o filme parece se passar, por volta dos anos 70 - época que John Wayne agia.




Momento pessoal meu para apreciação de Joaquin Phoenix

Quem me conhece está ciente de que o ator Joaquin Phoenix é meu xuxuzinho e meu crush de adolescência. Sempre o admirei como ator (e como homem também) desde seu primeiro grande destaque em Gladiador (no qual, por sua interpretação de Commudus já quase poderia ter lhe rendido um prêmio na academia de cinema) e ele sempre protagonizou papéis de personagens profundos e claramente confusos ou perturbados.

Então, quando foi revelado que ele seria o Coringa, todos já esperavam uma atuação magnífica. E foi exatamente isso que Phoenix entregou. O diretor havia dado total liberdade para ele interpretar o personagem como quisesse, podendo utilizar tudo o que já usou em outros papéis mas sem freios, principalmente pelo caráter excêntrico e maneirista do personagem. E Phoenix consegue alternar expansividade e contenção com enorme sabedoria.
Para o papel, o ator chegou a emagrecer mais de 20 kilos (confesso que fiquei com dó ao ver a magreza do corpo e como isso afetou seu rosto, justamente porque Phoenix sempre teve uma estatura mais encorpada - espero que ele volte ao físico normal dele logo) e teve vários momentos de total reclusão durante as filmagens. E ele mesmo disse em entrevista que embora a sua magreza o tenha incomodado ao mesmo tempo lhe permitiu movimentar seu corpo de uma forma que nem ele esperava e isso podemos ver em diversos momentos do filme. E sua capacidade de se expressar nos momentos de tensão, desespero e raiva é simplesmente incrível. Sem dúvidas, um ator como poucos.

Quanto as comparações que a galera anda fazendo sobre dos atores que interpretaram o Coringa, eu acho sempre uma comparação sem sentido. Porque cada um que interpretou o personagem de forma brilhante dentro do contexto do filme em que foi inserido. Temos Cesar Romero como um Coringa mais cômico e infantil no Batman de 1966; temos o fenomenal Jack Nicholson no Coringa autêntico dos quadrinhos no filme de 1989; temos Heath Ledger como o inesquecível Coringa sombrio e caótico de Batman Dark Knight; temos o injustiçado Coringa de Jared Leto (que é ruim não pelo ator, mas porque no filme e um Coringa pelo ponto de vista da Harley Quinn - e isso explica muita coisa) e agora o complexo e impecável Coringa de Phoenix.
Então, não conseguimos dizer qual foi o melhor Coringa: pois cada um deles cumpre seu papel dentro do enredo no qual é inserido e todos os atores que já vestiram a pele do personagem são atores excelentes. O Coringa de Phoenix tem o diferencial que traz á tona um personagem diferenciado do Coringa que costumávamos ver adaptado para as telas: o personagem poderia ser bem uma construção original, sem qualquer conexão com o Coringa e ainda assim seria incrível.




Aliás, muito se comenta do receio de muitas pessoas acabarem interpretando o filme erroneamente e isso culminar em atitudes criminosas. Mas eu não acho. Na sessão em que eu assisti o filme, notei muitas pessoas em que você via claramente que foram assistir achando que o filme seria repleto de um Coringa fazendo e sendo o grande agente do caos na cidade em efeitos especiais de destruição mirabolantes. Mas não é isso que ocorre, pois o filme gira em torno da melancolia, decadência e desespero do personagem, quase como um monólogo que tem como cotidiano a cidade já decadente social e economicamente de Gotham.
Assim, no fim da sessão, vi as pessoas quietas, pessoas estas que mostravam claramente que era a primeira vez que estavam assistindo um filme-arte no cinema.

Então, eu sinto que o público que verá esse filme irá ou procurar mais filmes do tipo, adquirindo o gosto por esse tipo de viés cinematográfico ou vão esquecê-lo depois de um tempo (ainda que o admirem quando for mencionado) e tornar a assistir e endeusar o Cavaleiro das Trevas e demais adaptações do universo de Batman relacionado aos quadrinhos. Porque esse é grandioso e caótico no sentido que as pessoas dessa geração estão mais acostumadas e mais satisfeitas para contemplar - o filme de Todd Phillips é um filme de um caos pessoal e social, um autêntico drama.

Não há em Coringa, uma divindade como "senhor do caos". Ele é um dos componentes gerados pelo caos que Gotham está mergulhada. Seu ato em legítima defesa (e no seu íntimo, a gratificação e coragem para continuar que encontra ao matar) desperta na população (através da cobertura da mídia que apenas fala de um Palhaço e ninguém sabe sua real identidade) o ponto que faltava para que esta comece um processo de anarquia caótica na cidade contra os poderosos de Gotham. E todos se vestem de palhaço para causar o caos, e foram essas pessoas em conjunto que começaram a onda de violência e destruição generalizada na cidade. Arthur Fleck foi apenas a faísca na fogueira já existente.




Todo o filme é uma obra de arte cinematográfica realista: desde a retratação de Gotham, bem decadente e real, com os problemas de um governo que não liga para o povo, as pessoas com problemas mentais sendo desprezadas e satirizadas pelas pessoas e como toda a sociedade pode decair para a barbárie. Ironicamente, Arthur Fleck na sua forma de Coringa, acaba se tornando um símbolo político, uma ideia vendida e comprada pela sociedade para representar e agir contra o sistema. Ele acaba por simbolizar, para todos aqueles que estão fartos da negligência dos governantes e ansiosos para deixar aflorar  a raiva que alimentam dentro de si. E Arthur observa com satisfação, que ele desperta não o riso de alegria da multidão mas sim o riso de desgraça da mesma.

Talvez, um filme ousado desses tendo sido vendido não apenas como a obra de arte pura que é, mas também como um filme cujo nome evoca o universo fictício de personagens que estão na "moda" atualmente (me refiro aqui a década dos filmes adaptados de quadrinhos com seus heróis e vilões) um tipo de artificio para atrair a maior parte das pessoas a assistirem um filme que os faça pensar e refletir. Você pode atraí-los em imagens promocionais como "um filme de vilão" e enquanto assiste mostrar a eles que eles podem se tornar os verdadeiros vilões se não aprenderem a ter consciência e amadurecimento para não decaírem. Não é um filme para entreter: é um filme para pensar.

Coringa acaba sendo uma fábula realista, um alerta sobre o horror da sociedade de nossos tempos, com seu individualismo predatório, excludente e retroalimentação de agressividade. É uma amostra subtendida de súplica para que as pessoas tenham mais empatia umas com as outras, que possamos refletir e repensar mais sobre cada um de nossos atos. Serve de alerta para mostrar o que não devemos deixar acontecer e possamos repensar nossos atos e posicionamentos para que não cheguemos a um colapso.
É uma obra sombria gerada em tempos pré-sombrios, mas em tempos nos quais ainda temos a chance de agir para que não aconteçam. 



~*~

Comente com o Facebook:

2 comentários:

  1. Deve ser eletrizante. Nos EUA estavam preocupados com reações negativas dentro das salas, disseram que o Coringa provoca atitudes ruins a quem tiver problema psicologico.

    Não curto filmes assim, fico angustiada, mas se passar na TV talvez venha assistir.

    Bjs saudosos da amiga Fada.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Então, eu lembro da cera preocupação acerca do filme mas no fim, o filme não causou o alarde que pensavam que causaria. Ele foi aclamado pelo público como deveria ser: como uma obra de arte. Quem foi com a mentalidade de ver um filme de vilão nos moldes de filmes de heroi, com uma romantização do criminosos e tal, quebrou a cara. Porque o flme mostra uma realidade reflexiva e desperta a consciência.
      Na sessão em que assisti, as pessoas ao final ficaram absortas: alguns eu vi pelo rosto que estavam refletindo sobre o filme o que é muito bom.

      Se não quiser ver no cinema, baixe o filme. Logo já deve ter em alta qualidade. Recomendo demais e o Joaquin Phoenix está incrível.

      Bjs!

      Excluir