20/03/2019

Precisamos falar sobre The Handmaid's Tale





Uma das séries mais incríveis e chocantes já produzidas, The Handmaid's Tale ( O Conto da Aia, em tradução literal) possui o apelo - e também um alerta - reflexivo e analítico com relação as direções  retrógradas e opressoras que muitas sociedades atuais estão tomando.


A série canadense produzida pela MGM Television e Bruce Muller, distribuído pela plataforma Hulu (no Brasil, a GloboPlay também possui os direitos de exibição) é uma adaptação da obra de Elisabeth Atwood, lançada em 1989. Até o momento, a série possui duas temporadas: a primeira com 10 episódios e a segunda com 13. Uma terceira temporada já está sendo produzida. 

Sucesso de público e crítica, recebeu o mais que merecido Emmy de Melhor Serie Dramática no ano passado. Com um roteiro bem montado e dirigido, atuações excepcionais, e uma fotografia primorosa, toda a série é uma obra de arte, e por mais que seu enredo seja perturbador ele é altamente reflexiva e também serve como um alerta. 

 A autora Elisabeth Atwood revelou que uma das suas inspirações para criar a história base de “The Handmaid’s Tale” -  o pesadelo que é a "república de Gillead"  -  foi o que aconteceu na Argentina nos anos 70. Durante a ditadura militar da argentina, que durou 7 anos, de 1976 a 1983, centenas de mulheres grávidas, que estavam na resistência ao regime, foram presas e os seus companheiros foram mortos. Já as futuras mães foram mantidas vivas até darem à luz. Depois, os recém-nascidos eram, então, entregues a famílias de militares que tinham dificuldades em terem filhos, enquanto isso as mães eram executadas nos centros clandestinos onde estavam presas.

 Some isso também á inúmeras referências que a série faz acerca de regimes totalitários que usam deturpações dentro de doutrinas religiosas para oprimir, dominar e exterminar minorias. E também á opressão e diminuição do papel da mulher na sociedade que aconteceu na Palestina: compare o modo de vida dos anos 60 e os da atualidade lá. E não esqueçamos também da opressão militar causada por regimes ditatoriais ao longo da história. Na verdade poderia ficar horas aqui enumerando os vários acontecimentos históricos perpetuados por regimes ditatoriais no qual as pessoas (principalmente as mulheres) são obrigados a se submeterem á qualquer vontade de seus governantes.

São tantas comparações entre a realidade e a ficção que é impossível não pensar sobre.








Não pretendo aqui contar muito do que se trata a história: prefiro que você assista e vá se surpreendendo e desvendando esse mundo sombrio em que a  história se passa. Quando me perguntam do que se trata a série, meu resumo básico é:

 Em um suposto futuro alternativo distópico,  devido a algum fenômeno, os humanos se tornam, em sua maior parte, inférteis. Atribuindo a infertilidade á natureza feminina, um grupo denominado Filhos de Jacó, realizam um golpe de estado nos EUA e tomam o poder. Fundam então a "república de Gillead" que possui um opressor fundamento religioso e instalam no país um regime militar fascista no qual as mulheres se tornam as maiores vítimas.
Na série, já somos apresentados á esse regime em seu total poder e submissão da população e é através de flash-backs dos personagens que vamos, gradativamente, descobrindo como isso ocorreu e como aos poucos, as pessoas foram perdendo seus direitos. Sob um novo regime de castas sociais, as mulheres foram subjugadas e perderam todos os seus direitos civis: não podem trabalhar, ter propriedades, dinheiro ou mesmo ler.
Por conta da infertilidade que assola o mundo, a república de Gillead se isola e tira todo e qualquer direito ás mulheres, as separando em "classes" para que cumpram suas funções "para com Deus e a sociedade". 
Assim, as mulheres férteis são obrigadas e doutrinadas a se tornarem "aias" que em suas típicas roupas vermelho-sangue são enviadas á casais ricos no qual são estupradas em um ritual denominado A Cerimônia" (com participação visual da esposa infértil do marido) para engravidarem e darem á luz á crianças. Após o nascimento, elas são separadas dos bebês e levadas para uma outra família, onde a situação se repete.
Já achou isso chocante?
É só o começo de toda opressão e humilhação. 

E ao longo da história acompanhamos a aia Offred (cujo nome real é June) em seu pesadelo diário na convivência com o casal Watterford: as violências físicas e emocionais, seu psicológico gradualmente fragilizado, a forma como ela procura forças em uma situação onde, aparentemente não há ninguém que possa lhe ajudar. É através dela (brilhantemente interpretada por Elisabeth Moss, dotada de uma expressividade ímpar) que vamos acompanhando a história das demais aias, a violenta aura de Gillead, as nuances de Serena Watteford, o misterioso Nick, a coragem de Emily e Moira e por aí vai.
Um dos pontos altos da série é a forma como acompanhamos o presente e o passado dos personagens em flashbacks que remetem a antes da dominação de Gillead: onde as pessoas viviam como nós vivemos e de repente, de forma súbita e gradual, as coisas começam a mudar, os direitos começam a ser tirados, guardas armamentistas começam a dominar.
Quando se percebe, é tarde demais.



Em termos técnicos, a série possuem uma narrativa excelente: focada no psicológico das personagens centrais. A série é silenciosa, os personagens falam baixo na maior parte do tempo, o que reflete a postura da mulher nessa sociedade distópica.

As esposas dos grandes lordes se reservam somente ao papel de esposas "recatadas e do lar" vestindo sempre trajes na cor verde-musgo; as empregadas domésticas denominadas "marthas" são inférteis e vestem cinza. E para as aias, sobra o odioso traje vermelho que deixa claro que são "férteis", portanto propriedade dos lordes para reprodução.
Toda essa paleta de cores aliada á fotografia que raramente vemos em séries, torna a atmosfera de Handmaid's Tale sufocante, opressora e sombria (é interessante notar que os dias são sempre cinzentos ali). E a filmagem das cenas é outro ponto relevante: ela é contínua ao longo de determinadas cenas, acompanhando o personagem e seu olhar ou optando por posições que nos dão a sensação de que algo pode acontecer ou alguém pode estar observando. O horror visto na tela é de embrulhar o estômago e a câmera não tenta se esquivar. Diferentemente de outras séries feitas apenas para chocar, as cenas ali têm contexto e são duras de assistir. Mas necessárias.

Até porque, sendo bem franca, embora Handmaid's Tale aos poucos mostre as personagens femininas (e também alguns homens) começando a se unir através de pequenos gestos, comentários, olhares e atitudes, a esperança que paira é constantemente um filete: não haverá ali uma estrondosa revolução e isso fica bem claro em vista da total limitação, agressão e alienação impostas. Mas mostra em suas personagens, a força emocional, a coragem, o controle e a adaptação sem perder sua própria essência é uma demonstração de que isso pode desencadear uma gradual mudança.




Considerada por muitos como uma serie de viés feminista (e de fato o é também) não podemos considerá-la unicamente isso. Porque ela é muito mais. É uma série de conscientização para todos aqueles que sabem a importância que é contestar, duvidar e confrontar atitudes político-religiosas que se mostrem (de forma explícita ou velada) uma inclinação para diminuir e oprimir aquilo que não concordem.

E, embora a série tenha como seu público principal, o público feminino, é mais do que recomendado que os homens também assistam. Principalmente se forem homens conscientes. Porque a obra vai te fazer refletir MUITO MAIS sobre o peso da opressão e criar uma empatia pelas vítimas de algo que talvez não os atinja com a proporção que nos atinge.
Uma coisa que me dá um nó na garganta é que consigo visualizar muito bem também, infelizmente, que cenas ali que servem para causar desconforto e reflexão, podem acabar causando uma fantasia em misóginos que na certa iriam apreciar um regime como o de Gillead. E se conseguimos cogitar isso é porque no fundo sabemos o quanto de pessoas ávidas por perpetuar algo ruim estão inseridos na sociedade (as estatísticas de crimes de ódio não deixam mentir).

 Como mencionado antes, um cenário sociopolítico desses não se faz da noite para o dia. Muitas interferências, muito ódio à sexualidade alheia, muita tentativa de suprimir direitos e barrar coisas que as pessoas queiram fazer de suas próprias vidas, são visíveis antes mesmo do golpe final. E aí está o alerta. Em nosso mundo, temos inúmeras dessas coisas acontecendo, em estágios e lugares diferentes.
E isso é mostrado no universo da série através dos flashbacks que mais parecem pequenos avisos que, como a personagem June mesmo diz "não percebemos até que fosse tarde demais".






Eu me considero uma pessoa extremamente de boas e tranquila para assistir qualquer coisa de cunho violento (seja físico ou psicológico) de modo que não desperto qualquer tipo de "gatilho" além de uma reflexão mais demorada e profunda sobre o tema abordado ou a forma como cenas são mostradas. Mas The Handmaid's Tale se mostrou surpreendentemente uma exceção para mim. Pela primeira vez eu realmente me senti com um nó na garganta em determinados momentos da trama. Não apenas pelas cenas em si (as cenas por mais cruéis e realistas que pareçam até dá para manter o foco de que é uma produção) mas pela mensagem subtendida e tão dolorosamente possível que ela pode se tornar (ainda que não de uma forma literal como mostrada).  Á medida que acompanhamos a história, vamos tendo a perturbadora sensação de que ela parece mais uma previsão real do que apenas um conto de ficção.

Assim, ao mesmo tempo que eu quero indicar a obra para amigos e conhecidos, ao mesmo tempo fico com um certo receio. Porque a série toca bem no fundo de nossa psique, nos faz temer discursos e posturas reais de governos e movimentos religiosos. E as cenas de violência mostradas focam no estrago psicológico que causam nos personagens, o que na certa pode desencadear momentos de nervoso e preocupação (os conhecidos "gatilhos"). Tenho amigas que eu queria muito poder indicar a série para assistirem mas sei, com base no emocional, experiências traumáticas e até mesmo visão política, que a obra poderia causar um mau-estar.
Mas talvez essa série precise ser vista, precise ser comentada e debatida. Porque ela levanta questões e mais do que isso: nos serve de alerta.
Não digo aqui que nossa sociedade possa virar uma Gillead da noite pro dia mas que tenhamos consciência de que isso não vira algo semelhante apenas porque não nos calamos, não abaixamos a cabeça. Ainda que a trama tenha como "motivo para o avanço da religião extremista, a infertilidade humana" a forma como eles vão ganhando poder e benefícios para agirem a bel-prazer em cima dos outros é uma mostra que quanto mais vamos ignorando e aceitando os sinais que denotem perda de direitos sob a máscara de política e religião, se nos calarmos diante de atitudes preconceituosas e misóginas, mais força vamos dando para perdermos o que é nosso por direito.


The Handmaid’s Tale é uma série que nos mostra o que uma sociedade pode se tornar quando uma camada extremista começa a ganhar poder diante da omissão daqueles que podem suprimi-la.  Mostra como é fácil acontecer de termos nossos direitos e liberdades tirados pelo governo. Mostra como o fanatismo e a vontade de fazer o mal pode crescer se quem for contra isso não se impor. Talvez atraves dessa obra de ficção, percebamos que tais coisas já estão acontecendo em outros lugares do mundo e que se deixarmos, eles não vão apenas continuar, como vão se expandir.

Porque, sejamos francos: se ao assistir toda a série você não se sensibilizar ou não ficar nem um pouco perturbado e refletindo sobre o que é mostrado, tem algo muito errado com você. The Handmaid's Tale não é uma série de distração, é uma série de conscientização.



" Bendito seja o fruto...que o Senhor jamais possa abrir."


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